terça-feira, 13 de outubro de 2015

Algumas impressões acerca das provas vestibulares da PUC/2016

Este não era um texto que eu intentava publicar, no entanto, como acredito que a palavra não é estéril, ela está impregnada de ideologia e política, acredito, consequentemente, que a palavra solitária é egoísta, por isso ela precisa de interlocução. Por isso escrevo. Porque gosto e porque dominar a palavra é uma forma de poder - do bem - para uma professora de redação, como eu.

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(Trilha sonora: De ponta a ponta tudo é praia-palma, do Thiago Amud) 

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Bem, antes de mais nada gostei dos textos das provas. Claro que tenho algumas críticas, e é sobre elas que escrevo (boas ou menos boas, digamos assim).
Penso que estamos em um mundo onde não pode mais haver muros que separem as disciplinas das humanidades no Ensino Básico. Como professora de redação, tenho o privilégio de transitar entre as mais diversas áreas, mas nem sempre posso (não tenho propriedade nem o repertório de outras ciências humanas) dissertar sobre questões muito específicas ligadas às áreas da história, história judaica, geografia, sociologia, filosofia - esta é uma questão ética. Nesses campos, eu sou uma pesquisadora amadora (no bom sentido, daquele que ama), porque não separo a Literatura das demais áreas do conhecimento das humanidades. Às vezes, é bom dar nome às coisas e ao que somos, para não corrermos o risco de sermos subjugados - e corrermos o risco delicioso de sermos criticados! Eis quem sou: (embora não seja uma mulher de vaidades acadêmicas): sou, além de professora, aluna-pesquisadora da UFRJ. A mim foi dado o privilégio também de falar (a burocracia/um título pode nos beneficiar ou legitimar nossas falas em certas situações). Quando leio meus alunos, eu o faço com o respeito à dignidade humana e à dignidade de todos; sei seus nomes e sobrenomes, envolvo-me com eles, coloco-me num lugar de aprendiz outra vez, e Guimarães Rosa que me salve: mestre é aquele que, de repente, aprende.
A prova da PUC-Rio veio para comprovar como as barreiras/fronteiras das ciências humanas estão, paulatinamente, tornando-se mais fluidas com o decorrer do tempo e com os avanços dos estudos da teoria pós-moderna e, ouso dizer, pois que Benedict Anderson foi mencionado na prova, das teorias pós-coloniais. E me surpreendi com a qualidade dos textos das provas de Literatura Brasileira, Língua Portuguesa e Redação, pois esses saberes, sobre os que já falei, estavam todos lá, "indissociados", indissociáveis (vide as referências ao Iluminismo e à Revolução Francesa, ao Estado Nazista e aos Direitos Humanos, ao Brasil da década de 1930 e às mazelas do cheiro da ditadura que já pairava no ar da terra brasilis e da irmã lusitana, certo?).

Pensar em ética - tema de uma das redações - é analisar a humanidade como ela se nos apresenta hoje. Nesse sentido, a prova de redação trouxe um tema bastante contemporâneo, que está na crista da onda dos estudos acadêmicos (o que não é mais do que uma representação do que estamos vivendo hoje política, social e economicamente). A prova de Língua Portuguesa segue sempre um modelo há algum tempo e eu penso que ela trabalhe justamente com as possibilidades de lidar com a língua, virá-la de cabeça pra baixo, estender o repertório linguístico dos nossos alunos, compreender que não existem sinônimos exatos (e aí esta a riqueza da palavra!) e que o sujeito pode e deve escolher o seu registro de escrita. Na literatura, não faltaram diálogos com a sociologia (repare-se os textos de Graciliano e a relação que se pede com o Brasil - fim das barreiras didáticas que separam a literatura por períodos definidos, caducos e estanques! Que sucesso! Olavo Bilac aparece fora de padrões fixos do que se chama Parnasianismo no Brasil!) e a maravilhosa carta de Mario para Tarsila, também realçando a importância do movimento iconoclasta da semana de 1922 para os estudos das humanidades em geral.
Não foi só a literatura o alvo dos modernistas de 1922, mas a estrutura social do Brasil, as estruturas econômica, cultural, linguística, etnográfica... Ou seja, a carta do Mario é atemporal. Isso vai muito além do que chamamos de transdisciplinaridade: penso que estamos falando de interlocuções, diálogos; de ciências que intentam romper o abismo entre a escola básica e o ensino superior. E o que há na realidade é exatamente o abismo, de uma maneira geral. Nós todos sabemos que o ensino público é estanque, os professores param de estudar, devido à demanda do mundo capitalista pela sobrevivência, baseiam-se em manuais amarelados, são mal-pagos e banalizados pelo sistema, que transforma a educação em instituição financeira... Pena! E a Universidade não conhece a Escola Básica. Ela vê, do alto de sua sabedoria inquestionável, o caos da educação, e, da sua Torre de Marfim, aparta-se e omite-se (tem sido a regra, mas já há exceções, como os estudos das literaturas marginais, sobre as quais pesquisadores da UFRJ e outras IFs promoverão um seminário, que divulgarei aqui no final do ensaio).

Bom, na prova de redação, cujo tema era ética, abria-se uma discussão que convidava o sujeito a falar de alguma experiência: aqui, falamos de empirismo. Alguns alunos me escreveram dizendo que não souberam bem como fazer o diálogo com experiência e teoria.
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Pausa para reflexão e ir passar o carnaval na Mesopotâmia.
 
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Refletido: ainda, nós, aqui na base do sistema educacional, temos de discutir (destruir barreiras!) entre teoria e prática, desmistificar a redação do ENEM (o mito é o nada que é tudo, já diria Pessoa, com seu cinismo lírico corrosivo!) e termos clareza de que a prática corpo a corpo professor-aluno entre os muros da sala de aula deve extravasá-los, sempre. E só nós, apenas nós, os que estamos neste corpo a corpo, podemos falar sobre ele (mais um privilégio, que não cega - como sói acontecer aos poderosos apáticos, pois que estão muito acima da nossa voz -, mas, ao contrário, expande o olhar). Isso iria longe!
Voltando ao tema: O texto da Marilena Chauí é apenas interessante, mas está num nível de compreensão, para alunos advindos do Ensino Médio, ótimo (mas que aluno é esse, já pensaram sobe isso?) No entanto, os conceitos são difíceis.
E nosso papel? E a nossa voz, que doamos diariamente, por afeto e amor, àqueles sujeitos chamados alunos - cheios de luz? Não damos aula por dinheiro, creio eu, ou deveríamos voltar a Marx e discutir a mais-valia, tendo em vista o quanto trabalhamos em casa, nos finais de semana, nos feriados... Pano para manga.
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Gostaria de sugerir que nós, professores, tenhamos uma interlocução formalizada, um grupo de estudos e trocas de textos e experiências. Para mim, isso é fundamental. Os estudos pós-coloniais, de alguma maneira inaugurados com a questão das comunidades imaginadas de Anderson (sem falar de Fanon e Levi-Strauss, que já discutiram raça e valores culturais), são meu material de estudo e pesquisa constantes. A África não apareceu na prova claramente, mas eu diria que o subtexto da questão Estado-Nação passa, necessariamente, pelas discussões: 1) da divisão, arbitrária e criminosa, geopolítica dos territórios africanos no período pós-colonial/imperialista; 2) da divisão de uma Nação-Brasil em Estados, pois se nação é um conceito abstrato que abrange uma comunidade, ainda que esta mesma comunidade não tenha consciência dos valores reais que a regem, como é o caso do Brasil, nação (por abstração, linhas verticais de parentesco cultural) e estado, que nos divide, como refletir sobre o paradoxo? São questões que poderiam perfeitamente vir à baila novamente nos exames do ENEM.

Notem que não estou aqui descartando a importância do estudo da gramática normativa como mais uma modalidade a se apropriar: isso enriquece o repertório dos alunos. Mas temos a gramática descritiva, a gramática pragmática, a gramática do português falado no Brasil, "tão sabendo"?
Dar nomes aos fatos da língua escrita, compará-los com as diversas modalidades da fala, saber transitar entre os registros linguísticos é importantíssimo (d'accord, Oswaldo?). Para mim, na redação, interessa-me que os alunos consigam se "desenrolar" diante do imprevisível, e isso só é possível se eu nomear - filosoficamente - classes de palavras que garantam coesão, clareza, coerência e linearidade dos textos que eles produzem. E debater. Todavia, o mais importante não é decorar (a não ser que seja exatamente como a origem da palavra sugere, "saber de coração") ou memorizar regrinhas mnemônicas (como fazem os cursos preparatórios), que os engessam e que podem escapar-lhes na hora de tensão de uma prova que é (?) decisiva. O preparo é para o que o mundo tem apontado como aspecto de pós-pós-modernidade: o inusitado, o imprevisto. E lidar com isso é muito difícil.
E mais: é absolutamente inadequado e irresponsável considerar as variações linguísticas como erradas. E vou mais fundo: a partir do momento que nomeamos um fenômeno linguístico (refiro-me a uma conversa que agora me foge com quem e quando tive), nós o legitimamos. Chamar "estrangeirismos", "anglicismos", "galicismos" e outros nomes mais apenas fortalece o poder da dinâmica formidável e revolucionária da língua/estudos de linguística - e as legitima como formas nossas, brasileiras. Sabe o "pequeno almoço" do português europeu? Impregnado de França. Legítimo.
A crítica que é menos boa diz respeito ao outro lado da moeda do que é bom: a escola, como entidade, instituição antiquíssima, está passando ao largo dos estudos contemporâneos - e a universidade também está na mesma - talvez porque receemos que nossos alunos não compreendam um texto mais "complicado". Eu acredito que eles compreendam sim e que devemos, antes de mais nada, arriscar e não subjugar os saberes deles. Em toda a minha experiência em sala de aula, encontro alunos com os quais tenho diálogos muito especiais, alunos que voam. Cabe a nós cuidar da altura desses voos e trazê-los ao mundo líquido e caótico - buscar a entropia, num mundo não de utopia, mas de distopias!!!! A prova da PUC foi uma surpresa em termos de conteúdo textual.

E jogo uma ponta do meu incômodo: onde estão as artes, além da literatura (Literatura é arte... Já passamos da hora de declarar a independência da Literatura e inseri-la no currículo das artes: a arte de usar a melhor palavra, da melhor maneira, aludindo à fala de uma poetisa amiga lá das remotas ilhas em que vivi. A arte de criar com palavras, como pintar, fazer música, malabares, esculturas, instalações. Desestabilizar o status quo). Aliás, acredito neste dever ético que temos: desestabilizar; tirar o sujeito da zona de conforto que o impede de crescer. Vamos ao confronto. Olhos nos olhos, com mais dúvidas que certezas - pois que certeza, para mim, é irmã da paralisia.

PS1: quase me esqueço de comentar o texto de Vargas Llosa, peruano, que viveu na Espanha e na França ("Saberes e utopias: visões da América Latina", fragmento de um artigo chamado "O país de mil faces" - eu me identifico muito com isso, porque sou uma migrada de Minas para o Rio!), que trata de pertencimento e que deu mote para a redação sobre a visão e as concepções do Brasil hoje, dialogando com Ignácio de Loyola Brandão ("Não verás país nenhum") e Oswald de Andrade (que gostava de ser chamado de Oswaldo, "O rei da vela"). Mas isso pode ficar pra outra conversa.


PS2: Não acho que a prova da PUC tenha sido o padrão ideal avaliativo. Ela é um pouco vaidosa, acadêmica, não conhece o abismo sobre o que falei antes... Isso serve para deixar claro que este texto não é uma apologia à PUC como exemplo sensacional (com alguma ironia) de "elaboladora" de provas de vestibular. Eu sou filha da PUC. Falta organicidade no debate intelectual (leiam Gramsci, Said, Derrida, Culler). Foram apenas considerações sobre a realidade que lá foi abordada! Uma espécie de desconstrução e desabafo. Que aguarda interlocuções!

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E do Seminário, segue o link:

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