terça-feira, 8 de outubro de 2013

Cerzir

"Mas eu sei que você virá, você virá e passearemos pela marginal de mãos dadas enfrentando o sol da Baía com os olhos limpos das névoas da saudade." (da minha amiga S. para mim, hoje.)
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Então, depois de semanas nebulosas, entre raios e tempestades, estive frente a frente com os mais abomináveis atos que uma pessoa pode cometer. Mas antes que se pense que isso é ruim, eu já explico que não, não é ruim. Eu tresli o Grande sertão: veredas, que é minha obra-chave pra todo momento da vida, e ali estão claros os nossos limites, e a nossa mais pura essência (com licença da palavra): viver é perigoso, e ser gente é perigosíssimo! É preciso sempre ter em mente que o tempo inteiro o que há de mais humano em nós pode derramar... e não adianta depois chorar sobre o derramado. O que foi, deixa estar. Não se conserta. O que se tem de fazer é cerzir a própria alma. Chega uma hora em que o ego tem de ser o centro de cada "eu", e topar com as dores, as dificuldades, e as coisas pérfidas (as que praticam contra nós e as que nós praticamos contra os outros e, mais uma vez, contra nós mesmos) não é exatamente ruim. É, muitas vezes, absolutamente necessário para nos compreendermos nessa difícil condição humana, que tentamos incansavelmente dominar, mas que no fundo, tem uma fragilidade imensa, da qual sequer damos conta às vezes. É como conhecer o médico e não saber que nele há o monstro. A linha que os separa é muito tênue. Escrever ajuda a elaborar os "erros", os arroubos, e entender os acertos, olhar mais para eles. Fazer um inventário de coisas gostosas vale a pena, mas não esquecer o inventário das coisas que nos fazem ser humanos é fundamental pra reconstruir o caminho que escolhemos.
E deixemos de filosofias vagas...
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Num intervalo de sossego matinal, peguei o livro do Michel Laban que contém entrevistas com escritores de São Tomé e Príncipe, e me deparei com as fotografias deles - uns que conheci, outros que não. E não consegui ler, porque as imagens me deixaram com aquelas saudades atlânticas... Fechei o livro, entendi que ainda não consigo remexer nas memórias são-tomenses, respeitei o meu sentimento e fui me deitar um pouco. Sonhei que algumas coisas que não aconteceram em São Tomé tinham acontecido. Sonhá-las foi uma forma de realizá-las. Que interessante: eram letras em cima de uma superfície muito grande, muitos papéis, e junto disso tudo, uma voz que lia poemas sobre as ilhas. Despertei, gravei na memória o sonho, tirei da frente dos meus olhos os livros que me deixam com saudade, e saí.
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Descobri, finalmente, uma livraria pertinho de mim. Ando alguns minutos, e lá estou eu, zonza entre tantas obras. Optei pela crônica: texto rápido, na maioria dos casos, fácil, e às vezes até lúdicos. Mas a minha mão sempre pára em Clarices e Caios... Dessa vez, peguei as "Pequenas epifanias", subi mais um lance de escadas na livraria, pedi um café, um cheese cake, e li só o prefácio, que por si só já é uma graça! Escrever é uma forma de libertação, mas ler também: dá uma sensação de liberdade absurda, de saber-se no mundo e permitir a fruição estética. É preciso alimentar o espírito.
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Agora, de volta a casa, tento esboçar essas linhas, e nunca considero que estão boas. No entanto, gosto de escrever e de ler depois o que escrevo, ainda que não me apraza (essa palavra existe?). Escrever é uma forma de entender o humano, e de me reconciliar comigo mesma. Falar das saudades de São Tomé e dizer que ainda não consigo mexer nas memórias é uma forma de reavivar as memórias com doçura, de trazer pra perto de mim um pouco do cheiro daquele mar, das mãos das pessoas que amei e tirar as névoas da saudade. Falar das nuvens cinzas das últimas semanas também é uma forma de afastá-las, de me culpar menos por ter atitudes demasiado humanas, de pensar mais antes de extravasar essa humanidade de forma negativa.
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Enfim, cerzir, cerzir o espírito, reconciliar-me comigo e com o mundo, compreender o retorno e o recomeço da vida. Aceitar a novidade. Ver as fotos dos meus escritores e outras fotos dos momentos felizes que passei nas ilhas, não apagá-las num átimo de raiva ou tristeza. Deixar aqui as lembranças. Construir sobre elas um caminho firme. Ir, pausadamente, enxergando o centro de mim mesma, e me respeitando mais. Deixar o tempo fazer seu trabalho impecável! Deixar que a paciência venha inundar a alma cansada e apressada. Permitir que o novo invada cada poro do corpo, e me refaça. E que com isso eu me reconheça outra vez.
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Essa é a tarefa diária.