segunda-feira, 29 de julho de 2013

Pureza, simplesmente — é que eu também sou ave!

Me encantam as pessoas que se gritam no mundo sem medo. Eis que fala o Amigo Fred, em poema:

"Sou ave
livre
voo
do bando
com quanto gosto
vou e venho
pode ser
como se diz
tomo rota falsa
rumo ao céu

Tenho asas
não mais que duas
pode ser
como se diz
não tenho jeito
vou só com o vento
quem alto voa
se cai
ADEUS.

Trago ensanguentado
o meu bico
comprido
quem perde?
o quê?
que mal fiz?
a quem?
se me quebram o bico?"

(Frederico dos Anjos, poeta são-tomense)

Albertino Bragança e Edjmilton Fernandes

No dia 26 de julho, encerrei minhas atividades no ISP-STP (Instituto Superior Politécnico de São Tomé e Príncipe) com muita graça: uma sessão de defesa de monografia do então licenciando Edjmilton Fernandes com a presença do autor estudado, o Sr. Albertino Bragança. Autor de três obras fulcrais para a prosa são-tomense (Rosa do Riboque e outros contos, Um clarão sobre a Baía e Aurélia de vento), Albertino, com sua generosidade e delicadeza características, nos brindou com sua presença, incentivando e encorajando o meu (com muita honra!) orientando Edjmilton a fazer uma bela defesa do seu "Mulheres de Bragança: o feminino nas obras albertinianas". Reproduzo aqui o resumo do trabalho, que, se autorizado pelo autor, publicarei neste blog!

"A obra albertiniana compreende relatos ficcionais, que visa ao conhecimento da realidade santomense dos sécs. XIX, XX e XXI. A estruturação textual das obras, o prazer e o saber vão se tecendo com uma rede de implicações sociais. Esse modo de construção deixa descobertas as realidades colonial e pós-colonial, além da inquietação dos que contestavam o regime político da época.
Do outro lado da mesma moeda, o autor enaltece de maneira heroica a presença feminina no meio dessas controvérsias: trata-se de mulher que surge protagonizada, em primeiro plano, nas obras do romancista. O autor dá voz ao “rugir da leoa”, que era relegada à periferia cultural e social. Diante dos homens, as mulheres estavam quase sempre cabisbaixas, estavam marcadas pelo estigma de “incapazes”, certamente devido a vários mitos que reinavam sobre a sua pessoa e a certos costumes dos tempos. Nem na literatura se ouvia a voz da mulher.
O autor coloca a mulher em acção, como afirma em entrevista concedida a Michel Laban: “…eu forjei essa greve [dos estivadores] e pu-la [Rosa Adriana] a angariar fundos, que era uma coisa que uma mulher corajosa e decidida podia fazer. Ela fê-lo com dinamismo…”
Portanto, as mulheres albertinianas são aquelas que dizem: “somos capazes, não estamos atrás, mas, sim, ao lado dos homens, sofrendo e lutando contra os vendavais dessa sociedade complexa para nós.”

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Para José Eduardo Agualusa


“No princípio, os homens não falavam. Nenhum animal falava, excepto os pássaros. Havia um saco com palavras que estava à guarda de Andua. Foi então que apareceu um rapaz com um único braço, uma única perna e só metade da cabeça. O rapaz roubou o saco das palavras, abriu o saco e meteu as palavras à boca. Na manhã seguinte, quando despertou, era uma pessoa inteira, mas metade rapaz e metade rapariga. Além disso falava, e a sua língua era ágil e harmoniosa como a dos pássaros.” (De um conto tradicional ovimbundo, em Seleção de Contos, Provérbios e Adivinhas em Umbundo, de Jeremias Capitango) Apud AGUALUSA, José Eduardo. Milagrário pessoal. (Apologia das varandas, dos quintais e da língua portuguesa, seguida de uma breve refutação da morte). Dom Quixote: Alfragide, 2010.


Caiu-me nas mãos, Agualusa, no meio do sul da ilha de São Tomé e Príncipe, lá em São João dos Angolares, o seu Milagrário pessoal. Como um milagre, em meio às turbulentas águas que me vêm encharcando a alma nos últimos dias – de alegrias, e não. Como um milagre, suas palavras. Como milagres, os sorrisos calados no canto da minha boca ou nas minhas “retinas fatigadas”. Iara – nome que me joga numa tribo indígena do meu Brasil – me inquietou com as suas inquietações, e o professor, meu ombro de África, meu corpo de África, meu milagre no final de quatro anos vivendo em África. Você bem sabe, Agualusa, que não falamos assim no Brasil, de África, em África. Mas é aqui que estou, e daqui estou bebendo as palavras dos anônimos que me deram sorrisos e me ensinaram a dizer que vou dar gato banho, que simbrão hoje muito tem nove, tem dez, que não dá boleia gen’ noite, wê be wê, wê na be kloson fa êêê... Eu me regozijo a cada frase que fere meus ouvidos de brasileira, das Minas Gerais de Rosa e Drummond. E de um pedaço do Pantanal de Barros e do Rio/Bahia (ou será o contrário, ou tudo amálgama?) de Caetano. Ando tão cansada, Agualusa, e seu nome aquático é o que carrego agora pra onde vou, pra onde quer que eu vá nesses dias finais de São Tomé, que você também conhece. Confesso que estou cansada de saudade do Brasil, da pele da mãe, dos batuques do irmão, dos cabelos da irmã, da careca do pai, da voz das crianças, do seio dos amigos. Cansada de saudade do meu sotaque caipira, delicioso sotaque da minha família, do quintal onde enterraram o meu umbigo. Cansada de calar o óbvio e gritar muda pro mundo nada que se escute. Sou professora, e a mim me preenche o afeto dos meus a-lunos, lunas, que giram em torno da minha outridade e me ofereceram o espelho de não me ver. (Veja que estou com seu estilo nos poros.) Mas o Milagrário veio para me descansar a saudade e fazer nascer em mim uma espécie de pássaro, que voa longe, mas um pássaro muito pequeno, que some no firmamento, porque eu, Agualusa – e você nunca me conheceu e talvez nem nos conheçamos no futuro – sou pequena como esse pássaro que some, e meu amor pelas coisas da vida são como vôos perenes, longínquos, rastros. Um dia eu brinquei de ser poeta, escrevi palavras, mas quando eu juntei elas todas, percebi que só fazia inventário, por isso receio te dizer que um dia falei de milagres nos versos que tombavam da minha caneta. Mas o milagre muito íntimo do último dia é esse livro, sem segredos, que, como uma catapulta, me tirou da tormenta e me deu um certo “dialeto coisal, larval, pedral” que me fez ter coragem de te escrever essas linhas, com um poema pendente delas, jogando-as ao vento, sem saber se me lerá. Obrigada, Agualusa, pelo Milagrário pessoal.


— poema pendente —

Reticências

Sinto na boca o cheiro do sal
do mar verde e calmo daqui.

Caminho pelas ruas e não sei pensar.
Meus divagares são pássaros marinhos,
salgados.