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Na mesa, Naduska Palmeira, Leitora no ISP, Gabriel Antunes, da Universidade de São Paulo, Professor João Pontífice, vice-presidente do ISP, e Tjerk Hagemeijer, da Universidade de Lisboa |
É com muita satisfação que lançamos hoje, dia 25
de junho, no ISP, o dicionário livre santome-português / livlu-nglandji
santome-putugêji, apoiado pelo Programa de Reforço ao Leitorado Brasileiro. São
autores da obra o professor Gabriel Antunes, da USP, e o professor Tjerk Hagemeijer,
da UL. Ademais, devemos ressaltar que também são autores todos aqueles que
colaboraram com os pesquisadores, enviando suas contribuições, dando
entrevistas, discutindo os parâmetros e os paradigmas do dicionário, e todos
aqueles que falam, escrevem e escreveram a língua santome.
Para São Tomé,
trata-se de um passo imenso para a tão discutida valorização das línguas
crioulas faladas nas ilhas – quatro, no total – visto que, desde já, os desejos
se fizeram escrita, e esta, como diz o velho ditado latino, permanece. O livro
já foi lançado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 19 de
junho, em conjunto com a Associação para os Estudos dos Crioulos de base
Portuguesa e Espanhola e da Society for Pidgins and Creole Languages, e será
lançado na UNILAB (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira), no
Brasil, em 04 de julho. E, ainda, no dia 12 de julho, será lançado na Feira do
Livro de São Tomé e Príncipe, em Lisboa.
Agradeço à
Embaixada do Brasil pelo apoio, fundamental na compra de alguns exemplares do
dicionário para a distribuição gratuita em STP. Agradeço ao professor Gabriel Antunes,
que veio lançar a obra conosco, e com os são-tomenses, os mais interessados no
assunto. Estendo os agradecimentos ao professor Tjerk Hagemeijer, pela presença
nesta sessão e por todo o trabalho realizado.
Gostaria
de aproveitar o momento para dirigir algumas palavras aos senhores, de minha
inteira responsabilidade, acerca de minha experiência como leitora neste
Instituto, já que me despeço do cargo com este evento. Tenho acompanhado
ativamente as discussões que se fazem sobre as línguas em STP. No que diz
respeito ao santome, já se vê hoje uma atitude acadêmica e política para
valorizá-lo, não deixando assim que ele se transforme apenas em memória longínqua.
Começo
aludindo a Eduardo Lourenço, intelectual português:
“Uma
língua não tem outro sujeito senão aqueles que a falam, nela se falando.
Ninguém é seu “proprietário”, pois ela não é objeto, mas cada falante é seu
guardião, podia dizer-se a sua vestal, tão frágil coisa é, na perspectiva do
tempo, a misteriosa chama de uma língua.”
Quanto à
língua portuguesa, ainda vejo a necessidade de se descrever o português
são-tomense, que possui variedades enormes, e que passa por estudos iniciais,
na UFRJ, por exemplo, afim de se verificar os fatores que promovem essa
variação, associada possivelmente à escolaridade (quanto mais escolaridade,
mais lusitanizado, e o contrário, mais são-tomense). Tem havido cada vez mais
estudos acerca dessas variações,
todas elas legítimas e que precisam ser
valorizadas como tais. Os esforços têm como finalidade a abolição dos
discursos acadêmicos e políticos o mote de que “quem fala o padrão, imposto e não adequado ao país, é a elite”, quando em STP
não se fala como em Portugal, pensamento que esconde uma realidade muito dura:
quem fala uma variante dialetal desse “português mitificado padrão” é e será
sempre subalterno, ocupará sempre espaços de menos prestígio social. O problema
é que quem fala essa variante dialetal é a maioria da população do país! É
necessário, pois, desmistificar a ideia de que existe qualquer português “padrão”
(e o que é o padrão?), pois todos nós, falantes da língua, construímos nossos
padrões sobre as bases de nossas necessidades de uso. É importante também
ressaltar que a norma é essencial para a manutenção da língua e a fala é
fundamental para a sua vitalidade. A gramática normativa é o registro da
língua, sedimentado, e deve ser estudado. A fala é que dá à língua a sua
vitalidade e mobilidade inerentes. Volto a Lourenço:
“A
celebrada alma portuguesa pelo mundo repartida, de camoniana evocação, foi,
sobretudo, língua deixada pelo mundo. Por benfazejo acaso, os portugueses,
mesmo na sua hora imperial, eram demasiado fracos para “imporem”, em sentido
próprio, a sua língua. Que ela seja hoje a fala de uma país-continente como o
Brasil e a língua oficial de futuras nações como Angola e Moçambique, que em
insólitas paragens onde comerciantes e missionários da grande época puseram os
pés, de Goa a Málaca ou a Timor, que a língua portuguesa tenha deixado ecos de
sua existência, foi mais benevolência dos deuses e obra do tempo do que
resultado de concertada política cultural.”
Como
acadêmica e membro deste instituto, posso apenas propor que se debata e se aja
mais ainda neste sentido de legitimar a língua do “bom povo são-tomense”, como
poetou Manuel Bandeira em “Evocação do Recife” sobre a língua brasileira:
A
vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha
da boca do povo na língua errada do povo
Língua
certa do povo
Porque
ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao
passo que nós
O
que fazemos
É
macaquear
A
sintaxe lusíada
A
vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras
que não sabia onde ficavam...
E retomo:
é preciso valorizar a língua do povo do sul, do norte, do centro, das roças,
pois este mesmo povo, livrando-se do peso de não poder ascender socialmente,
porque não fala uma língua de poder, poderá ter sua auto-estima mais elevada e
se tornar verdadeiramente independente. Necessária é a apropriação da língua
que deverá ser descrita e a consciência das adequações linguísticas aos diversos
contextos de comunicação. A fala não pode ser julgada por valores como
“inferioridade” ou “superioridade”.
Camões
fundamentou uma língua, e nós fizemos brincadeiras com ela, imprimimos modos de
falá-la e de formulá-la, até que se tornasse nossa, embora língua sem dono, e
língua de todos.
Desfrutemo-la
pois, e demos a ela nossos sotaques, nossas variações.
Naduska Palmeira